segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

A invenção do amor

 

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas

janelas dos autocarros

mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de apa-

relhos de rádio e detergentes

na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém

no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da

nossa esperança de fuga

um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho

do medo da solidão da angústia

um cartaz denuncia que um homem e uma mulher

se encontraram num bar de hotel

numa tarde de chuva

entre zunidos de conversa

e inventaram o amor com carácter de urgência

deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia

quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e

fome de ternura

e souberam entender-se sem palavras inúteis

Apenas o silêncio A descoberta A estranheza

de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna

Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente

embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta

de um amor subitamente imperativo

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia

colado em todas as esquinas da cidade

A rádio já falou A TV anuncia

iminente a captura A polícia de costumes avisada

procura os dois amantes nos becos e avenidas

Onde houver uma flor rubra e essencial

é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta

fechada para o mundo

É preciso encontrá-los antes que seja tarde

Antes que o exemplo frutifique Antes

que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos

(...)

Daniel Filipe
A Invenção do Amor e Outros Poemas
Lisboa, Presença, 1972

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