quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Queixa das almas jovens censuradas

 








 
 
 

Dão-nos um lírio e um canivete

e uma alma para ir à escola

mais um letreiro que promete

raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário

que tem a forma de uma cidade

mais um relógio e um calendário

onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim

para dar corda à nossa ausência.

Dão-nos um prémio de ser assim

sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu

para tirarmos o retrato

Dão-nos bilhetes para o céu

levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crâneos ermos

com as cabeleiras das avós

para jamais nos parecermos

connosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história

da nossa historia sem enredo

e não nos soa na memória

outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados

que adormecemos no seu ombro

somos vazios despovoados

de personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelho

e um pacote de tabaco

dão-nos um pente e um espelho

pra pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeça

e uma cabeça presa à cintura

para que o corpo não pareça

a forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro

com embutidos de diamante

para organizar já o enterro

do nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornal

um avião e um violino

mas não nos dão o animal

que espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelão

com carimbo no passaporte

por isso a nossa dimensão

não é a vida, nem é a morte

Natália Correia, in "O Nosso Amargo Cancioneiro"
Fotografia: CHARALAMPOS MAVROMMATIS

2 comentários:

peciscas disse...

Este poema da Natália, que o José Mário Branco musicou, ainda hoje me causa arrepios pela espinha abaixo.
Ouvi inúmeras vezes esta canção, em Timor, quando, vivendo ainda "em tempos de escuridão" e subjugado por uma disciplina militar asfixiante, ansiava poe ver chegar a "manhã clara".

anamarta disse...

Também a mim este poema me diz muito e o ouvi muitas vezes nesses "tristes tempos" e continuo a ouvi-lo com emoção, e oxalá me engane e que este poema não seja novamente ouvido, ansiando nós todos por ver chegar a "manhã clara" porque o horionte que hoje alcançamos é bastante negro, principalmente para os jovens que não têem grandes perspectivas de futuro.
um abraço.