terça-feira, 18 de março de 2008

A Máquina Fotográfica

Never mind


É na câmara escura dos teus olhos

que se revela a água

água imagem

água nítida e fixa

água paisagem

boca nariz cabelos e cintura

terra sem nome

rosto sem figura

água móvel nos rios

parada nos retratos

água escorrida e pura

água viagem trânsito hiato.

Chego de longe. Venho em férias. Estou cansado.

Já suei o suor de oito séculos de mar

o tempo de onze meses de ordenado;

por isso, meu amor, viajo a nado

não por ser português mal empregado

mas por sofrer dos pés

e estar desidratado.

Chego. Mudo de fato. Calço a idade

que melhor quadra à minha solidão

e saio a procurar-te na cidade

contrastada violenta negativa

tu única sombra murmurada

única rua mal iluminada

única imagem desfocada e viva.

Moras aonde eu sei.

É na distância

onde chego de táxi.

Sou turista

com trinta e seis hipóteses no rolo;

venho ao teu miradoiro ver a vista

trago a minha tristeza a tiracolo.

Enquadro-te regulo-te disparo-te

revelo-te retoco-te repito-te

compro um frasco de tédio e um aparo

nas tuas costas ponho uma estampilha

e escrevo aos meus amigos que estão longe

charmant pays

the sun is shining

love.

Emendo-te  rasuro-te  preencho-te

assino-te  destino-te  comando-te

és o lugar concreto onde procuro

a noite de passagem  o abrigo seguro

a hora de acordar que se diz ao porteiro

o tempo que não segue  o tempo em que não duro

senão um dia inteiro.

Invento-te  desbravo-te  desvendo-te

surges letra por letra, película sonora,

do sendo à vogal  do tema à consoante

sem presença no espaço  sem diferença na hora.

És a rota da Índia  o sarcasmo do vento

a cãibra do gajeiro  o erro do sextante

o acaso  a maré  o mapa a descoberta

dum novo continente itinerante.

 

José Carlos Ary dos Santos

Obra Poética

7 comentários:

Anónimo disse...

Magnifica escolha. Belo post. Kiss

Nothingandall disse...

Não conhecia este poema, mas à medida que o lia o autor reconhecia ... «tinha de ser Ary».

Jorge P. Guedes disse...

Este ARY, ai este Ary, que torrente de palavras!

Nota:
Gralha no 6º verso - boca

Um abraço, Ana Marta.

Jorge P. Guedes disse...

AH!

BELÍSSIMA IMAGEM!

Isabel Filipe disse...

não conhecia este poema ...
é belissima ...

e a imagem que escolheste é simplesmente MARAVILHOSA ... deu-me umas ideias para uns trabalhos ...


beijinhos

Nothingandall disse...

Venho deixar-lhe um desafio cinéfilo sobre uma iniciativa que comecei em Janeiro de 2006. No caso de aceitar será o 26º. participante 20 best movies of all time. Só tem de pegar na lista tirar dois filmes que goste menos e juntar dois que goste muito e não estão na lista. Publicar e passar a outrém para prosseguir a actualização. Assim temos permanentyemente uma lista dos 20 melhores filmes, dinâmica, feita por todos e por nenhum... Uma referencia aos 5 ultimos blogs que actualizaram a lista é aconselhada. Assim ficamos, também, a conhecer alguns blogs novos. Espero que aceite e no caso de dúvidas contacte-me...

Carla disse...

tem as "marcas" do Ary...um poema perfeito