quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Os Ombros Suportam o Mundo









Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


Carlos Drummond de Andrade
Fotografia: Delay Tactics / Christian.

2 comentários:

Meg disse...

Anamarta,

Hoje, vagueando por aí, encontrei-te na Aldina Duarte e acabei por encontrar aqui um espaço que tem muito a ver comigo... para já a poesia.
Ainda por cima com um poema de um poeta que tenho sempre "à mão".
Se não te importas vou colocar um link para cá, pois gostaria de acompanhar o que por aqui se escreve... Posso?

O meu obrigada antecipado, num abraço

Meg

peciscas disse...

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Este poema, para quem, como eu, já está a caminhar para esse tempo de absoluta depuração, é, antes de mais, uma mesagem de tranquilidade.