sábado, 24 de maio de 2008

CARTA A MEUS FILHOS

 Dining Room Chair

Sobre os fuzilamentos de Goya

 

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.

É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós.

Um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural. Um mundo em que tudo seja permitido, conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.

E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto o que vos interesse para viver. Tudo é possível, ainda quando lutemos, como devemos lutar, por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, ou mais que qualquer delas uma fiel dedicação à honra de estar vivo.

Um dia sabereis que mais que a humanidade não tem conta o número dos que pensaram assim, amaram o seu semelhante no que ele tinha de único, de insólito, de livre, de diferente, e foram sacrificados, torturados, espancados, e entregues hipocritamente à secular justiça, para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»

Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido, ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.

Às vezes, por serem de uma raça, outras por serem de uma classe, expiaram todos os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência de haver cometido. Mas também aconteceu e acontece que não foram mortos.

Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer, aniquilando mansamente, delicadamente, por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.

Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha há mais de um século e que por violenta e injusta ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, que tinha um coração muito grande, cheio de fúria e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.

Apenas um episódio, um episódio breve, nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis) de ferro e de suor e sangue e algum sémen a caminho do mundo que vos sonho. ~

Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la. É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos e virá.

Que tudo isto sabereis serenamente, sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, e sobretudo sem desapego ou indiferença, ardentemente espero. Tanto sangue, tanta dor, tanta angústia, um dia - mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga - não hão-de ser em vão.

Confesso que muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos de opressão e crueldade, hesito por momentos e uma amargura me submerge inconsolável.

Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam, quem ressuscita esses milhões, quem restitui não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?

Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes aquele instante que não viveram, aquele objecto que não fruíram, aquele gesto de amor, que fariam «amanhã».

E. por isso, o mesmo mundo que criemos nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é nossa, que nos é cedida para a guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos corre nas veias, da nossa carne que foi outra, do amor que outros não amaram porque lho roubaram.

JORGE DE SENA

Fotografia: Kate Callahan

15 comentários:

Jorge P. Guedes disse...

Excelente texto, magnífica lição de vida, exemplar noção de liberdade de um homem que me habituei a ler e a respeitar desde os meus tempos universitários, como pensador brilhante do panorama português das Letras e da Ciência.
Foi muito agradável reencontrá-lo aqui.

Um abraço.
Jorge P.G.

Heduardo Kiesse disse...

Um exemplo pra assimilar e transformar em actos positivos!
Ana, beijão do teu


PARADOXOS

Meg disse...

Anamarta,

Jorge de Sena. Este é um daqueles textos densos de conteúdo, que exigem, a mim pelo menos, várias leituras, muita concentração e me faz pensar no que somos e o que andamos aqui a fazer.
E o mais difícil, o que vamos deixar aos nossos filhos!

Um belo texto para reflectir.
Um bom dim de semana e um abraço.

Isamar disse...

Anamarta

Voltarei para ler, amiga. Jorge de Sena tem de ser lido com concentração. Um daqueles que mais respeito.
Excelentes escolhas, as tuas.

Beijinhos

Nothingandall disse...

«Tudo é possível, ainda quando lutemos, como devemos lutar, por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, ou mais que qualquer delas ...uma fiel dedicação à honra de estar vivo». E está tudo dito... Um excelente fim de semana

Fernando Santos (Chana) disse...

Olá Anamarta, excelente texto...
Beijos

Unknown disse...

Olá Ana Marta...

Nao tenho tido grnade paciencia para o meu blog, mas está de cara lavada. Visite-me...

Beijos,

Márcia

Carminda Pinho disse...

Ana,
todas as cartas (palavras) que escrevermos (digamos) aos nossos filhos, serão sempre deste género...
Aos nossos filhos, temos o dever de chamar a atenção para o mundo em que vivem e, deixar-lhes um rumo...
Claro que tudo isto vem a propósito deste belo poema de Jorge de Sena que connosco partilhas, hoje.:)

Beijos

Maria disse...

Excelente texto de Jorge de Sena.
É nosso dever passar aos nossos filhos a idéia de que o Mundo, a Terra, não nos pertence, apenas a tomamos de empréstimo enquanto por cá andamos...
... talvez se consiga uma sociedade mais justa quando todos tomarmos consciência que esta passagem aqui é tão breve...

Beijos

Elvira Carvalho disse...

Excelente texto. Para ler e refletir. Um texto que podia ter sido escrito hoje, já que as injustiças de que falam continuam a acontecer hoje um pouco por todo o mundo.
Um abraço e bom Domingo.

vieira calado disse...

Olá, amiga!
Um dia destes coloco no blog um poema a Garcia Lorca, onde é focado um desses fuzilamentos feitos pelo fascismo.
O seu livro vai a caminho.
Penso que 2ª ou 3ª estará aí.

Bjs.

Unknown disse...

Olá! Obg pela visita... Pois, ele nao falou na namorada... :) Acho que ele vive algures em Oeiras... Tenho muito que procurar ;)

samuel disse...

Que grand escolha!
Texto muito bonito. Parabéns!

Abreijos

Isabel Filipe disse...

um texto que nos deixa arrepiados.

gostei muito.


beijinhos e boa semana

peciscas disse...

Excelente e sempre actual Jorge de Sena.
Por algum motivo este vulto da nossa cultura, nunca pretendeu voltar definitivamente a fixar-se em Portugal.