quinta-feira, 5 de junho de 2008

País a pontapé

pes

A mentalidade submissa. Os dias engarrafados, anestesiados.

O presente em zapping, sem comando, visto do sofá.

O futuro daqui a nada, mas pré-pago, panorâmico e digital.

A liberdade de sermos apenas o que quiserem fazer de nós.

Financiaram-nos o que não queríamos nem precisávamos, a juros bonificados.

Depois, em suaves prestações ou pagando mais tarde. No fim de contas, levam-nos a pele, os ossos, os sonhos, como sinal. E uma vida inteira para amortizar.

Foi lá atrás que deixamos de ser cidadãos para passarmos a clientes.

Fazemos downloads das nossas ansiedades e vamos para a cama com o messenger.

Taxaram-nos a esperança, o horizonte, o hoje para financiar o amanhã.

Disseram-nos que, em última instância, o Estado regularia, velaria por nós. Só não nos disseram que o Estado já era também cliente, jogava na bolsa e no «off-shore», tinha vícios caros e amantes no privado. Esconderam-nos que o Estado já nem sequer regula bem. E, às vezes, não regula de todo.

Não sei quando começaram a falar-nos de livre iniciativa, economia de mercado, liberalização disto e privatização daquilo. Tudo em nosso nome, iríamos perceber a sensação. A concorrência em benefício do consumidor, mais opções, melhor qualidade. Não nos disseram o que queriam em troca. Não nos disseram quanto custava. Não perguntamos. E agora descobrimos que o seguro não cobre todos os riscos.

Aqui, despede-se e «reestrutura-se» em almoços de camarão da costa, moet & chandon e jaguar à porta. Congelam-se ordenados entre baldes de gelo e um «15 anos.» Fumam-se quatro salários mínimos em charutos, por mês, a discorrer sobre a crise e as dificuldades das empresas.

Original ou réplica, somos o que vestimos.

Somos igualmente o que viajamos, o que compramos, o que almoçamos, o que vemos. Não sei quando deixamos de ser simplesmente…humanos.

Votamos pouco e mal, mas elegemos convictamente marcas e anúncios, estamos decididos a ser a geração Nike ou Adidas e a referendar a Gant ou a Armani.

Aceitamos ficar sem tecto e almoço, mas nunca sem rede.

Vamos a Cancun, Natal e Varadero para ser vistos e mostrar que lá estivemos.

Por vezes, jantamos comida de design porque é «moda» e estamos na moda porque é «in».

Pagamos e bebemos água como se fosse Barca Velha.

Buscamos o caminho mais curto para a existência e o equilíbrio emocional no spa, no pilates, na auto-ajuda e no quem nos acuda. Ao farmacêutico, ao psiquiatra e ao personal trainer só falta serem amigos lá de casa.

Endividamo-nos de ilusões, maquilhamos as feridas e angústias, retocamos a ideia que temos de nós e envelhecemos alegremente: tristes e infelizes, mas mais novos, saudáveis e atléticos graças à cirurgia estética e ao ginásio, IVA incluído.

Somos o zero à esquerda das decisões, a estatística gorda da fome, da pobreza, da desigualdade, a escanzelada percentagem de decência e dignidade. Somos, como numa cantiga, «intelectuais de bronzeado» e «elite de supermercado». Somos tema de conferências e colóquios, objecto de sondagens e estudos. Estamos nos resultados, mas nunca entramos na equação. Subtraem-nos nos lucros e fazem-nos cúmplices de prejuízos.

Mas, felizmente, nem tudo está perdido.

Por estes dias, vamos pôr uma bandeirinha na varanda, o disco do Roberto e do Tony, o cachecol no pescoço e comprar «sem juros, pague depois» aquele plasma muito em conta para ver o Ronaldo em grande e os filmes dos pequenos. Gritaremos até às entranhas pela pátria, pela finta, pelo cruzamento, pelo remate. Faltaremos ao trabalho, à família, aos amantes, à «manif» e aos compromissos. Em Junho seremos todos portugueses, todos iguais, todos diferentes: ninguém cobrará dívidas, até porque ninguém as pagaria. Estaremos todos por Portugal em harmonia fiscal. Chamaremos Scolari de nosso, abriremos conta «no banco de sempre» e correremos atrás do autocarro da Galp e da selecção como no anúncio da televisão porque, entretanto, até boicotamos a gasolina.

De festinha em festança, talvez a sorte nos sorria a pontapé ou à cabeçada.
Quando regressarmos ao que efectivamente somos, estaremos, de novo, orgulhosamente sós. Sempre entre futebol e Fátima, entre um golo e uma oração. E de regresso ao velho fado.

Fonte:   Visão - Opinião  Miguel Carvalho

8 comentários:

Heduardo Kiesse disse...

poderoso retrato do quotidiano que é nosso!! beijão em ti querida Ana amiga!

Carminda Pinho disse...

Ana,
Miguel Carvalho quando escreveu esta crónica, estaria a pensar a quente. Não que discorde dele em muito do que escreveu, mas, os portugueses estão de tal modo deprimidos com o rumo que o País leva, que não acredito que este seja o retrato de todos.
Falo por mim.

Beijos

lagartinha disse...

Anamarta
Recadinho do clube:

Caros Sócios:
Uma vez que esta página é para todos, penso que um dos benefícios devia ser o de poderem também publicar qualquer coisa aqui...
Assim, quem estiver interessado, faça o favor de indicar o e-mail para que o mesmo seja adicionado nas permissões de publicação.
Ana (Lagartinha Dot Com)
Clube de Bloguistas Portugueses

peciscas disse...

É isto mesmo.
A sociedade dita de "economia de mercado", ou muito me engano, está a entrar em colapso irreversível.
O que virá apara a substituir , ninguém saberá ao certo. Mas isto está mesmo a bater no fundo.
E é claro que o futebol, como muito bem ouvi hoje alguém na rádio dizes, vai ser um balão de oxigénio para o governo respirar um pouco.
Se as coisas correrem muito bem será mais ou menos um mês de algum alívio.
Mas, se correr mal, é mais um desaire a somar a tantos outros.
Cá por mim, não alinho na euforia em que nos querem fazer embarcar.

vieira calado disse...

Dum bom faducho, até gosto...
E da bola também...
Cá recebi a sua prezada carta.
Muito obrigado.
Bom fim de semana.

Elisabete Cunha disse...

Ana Marta

Vim aqui agradecer a atenção dada pela minha saúde!
obrigada e voltarei sempre!

voltei a blogar

elisabetecunha2008.wordpress.com

Jorge P. Guedes disse...

Um texto forte e amargamente realista!

Deixo-lhe um abraço, Ana Marta.
Jorge P.G.

Nothingandall disse...

Pois é... o mundo já não é o que era! Ou «o mundo é feito de mudança»... Um bom fim de semana