segunda-feira, 19 de maio de 2008

Bastava Que

Podia ter-me vendido

devia ter aceitado

a carta que me traziam

numa bandeja de prata

 

Carta cheia de promessas

o envelope timbrado

e com dois beijos de lacre

sobre o branco imaculado

 

Podia ter transigido

devia ter assinado

 

Podia ter-me rendido

à lei do estômago cheio

à lei do chapéu de plumas

à lei da besta sem freio

 

Devia ter-me traído

e entrar na roda do meio

 

Podia ter alinhado

a favor de Sancho Pança

negando que D. Quixote

fora sempre meu amigo

 

Podia quebrar a lança

devia adorar o umbigo

 

Bastava que eu não pensasse

o contrário do que digo.

 

José Correia Tavares  (1937) "in De Palavra em Punho"

 

Fotografia: Net

10 comentários:

Anónimo disse...

Magnifica escolha. Tão actual esse poema como a vida, como a luta e como os rios que hoje, nos leitos, correm na sociedade portuguesa...
Kiss e Boa Semana

Carminda Pinho disse...

Ana,
o que de bom tem ler poesia publicada na blogosfera, é que a maioria das vezes se encontram poetas e poemas que, não conheceríamos a não ser por este meio.
Foi o que aconteceu comigo agora amiga e, era tanto o que eu perdia...
Bastava que... não pubicasses este poema e, perderia uma pérola.
Obrigada.

Beijos

Isamar disse...

"Podia ter-me vendido...bastava que eu não pensasse o contrário do que digo"

Fantástica escolha amiga. Que sentir tão generoso nos consegues transmitir através das escolhas que fazes.

Bem hajas!

Através da divulgação destes poetas também se presta serviço público.

Beijos

LopesCaBlog disse...

Muito bonito e ainda bem que existem pessoas que fazem o que pensam :)

ANNA MATHAYA disse...

... O importante é SABER VIVER. Beijos inspirativos e obrigada pela visita

Elvira Carvalho disse...

Excelente poema. E de um poeta que eu não conhecia. Obrigada pela partilha.
Um abraço e bom feriado

Jorge P. Guedes disse...

Será que o meu comentário se perdeu, ou ficou a aguardar? É que não reparei se aguarda publicação e, assim, fico na dúvida.

Bom, logo se vê, Ana MArta!

Um abraço.

Meg disse...

Anamarta,

É, é o retrato das rasteiras que a vida põe por vezes no nosso caminho. Porque nunca se sabe o que vem dentro do envelope, que normalmente é da melhor qualidade.
Por isso toda a atenção é pouca.

Anamarta fiquei feliz por ver aqui uma grande MULHER, a Anna Mathaya.

Um braço

Elvira Carvalho disse...

Pois Ana, eu nasci no Barreiro sim.
Na Seca do Bacalhau da Azinheira Velha, numa barraca debaixo de um pinheiro manso. E provavelmente fui gerada para aí debaixo de um pinheiro ou sobreiro ao ar livre.
Em tempos no Sexta contei a história do Bacalhau e expliquei esta parte de como fui gerada.
A sua irmã, chama-se Elvira? Pois não é muito comum o nome. Só conheci duas em toda a minha vida.
Um abraço e obrigada pela visita.
Bom feriado

peciscas disse...

Perante tanta gente que conheci na minha juventude e que traiu os seus ideais de então, pelo saboroso prato de lentilhas do poder ou das benesses, já escrevi algo como isso.
Resta-me a modesta consolação de a consciência não me acusar de me ter vendido.