Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades
Sophia de Mello Breyner Andresen
Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades
Sophia de Mello Breyner Andresen
Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos á boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
Aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
Não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
Essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
Se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.
António Gedeão
Fotografia: www.paulocesar.eu - paulo cesar
Para verem alguns dos quadros desta Pintora, visitem o site:http://www.albagallery.net/InternetArtFair2008/Artisti/Almeida_De_Moura_Clementina/Almeida.htm
Ó meu rico Santo António
Meu santinho Milagreiro
Vê se levas o Zé Sócrates
P'ra junto do Sá Carneiro
Se puderes faz um esforço
Porque o caminho é penoso
Aproveita a viagem
E leva o Durão Barroso
Para que tudo corra bem
E porque a viagem entristece
Faz uma limpeza geral
E leva também o PS
Para que não fiquem a rir-se
Os senhores do PSD
Mete-os no mesmo carro
Juntamente com os do PCP
Porque a viagem é cara
E é preciso cultivar as hortas
Para rentabilizar o percurso
Não deixes cá o Paulo Portas
Para ficar tudo limpo
E purificar bem a coisa
Arranja um cantinho
E leva o Jerónimo de Sousa
Como estamos em democracia
Embora não pareça às vezes
Aproveita o transporte
E leva também o Menezes
Se puderes faz esse jeito
Em Maio, mês da maçã
A temperatura está a preceito
Não te esqueças do Louça
Todos eles são matreiros
E vivem à base de golpes
Faz lá mais um favorzinho
E leva o Santana Lopes
Isto chegou a tal ponto
E vão as coisas tão mal
Que só varrendo esta gente
Se salvará Portugal
( Até ver... autor desconhecido)
Fotografia: Aqui
Quem cantar o Alentejo
Tem-no já dentro da alma,
Que a tristeza não se inventa,
É como a fúria e a calma.
Loiras terras da planície
rasas na onda e na cor,
Quem cantar o Alentejo
Ou lhe tem ódio ou amor.
Sol a pino, mágoa roxa
Nos poentes. E o verde? e os pinhais?
Ai terras do Alentejo
De vós fogem meus olhos vegetais.
Gente triste, gestos moles,
de vós fujo, solidão,
Mas os ventos que me levam
Aqui deixam esta canção.
Fernando Namora
Fotografia: Minha
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Eugénio de Andrade
Fotografia: Cynthia Jean
Filhos…Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como o queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete…
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filho? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los…
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem xampu
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!
(Antologia Poética) de Vinícios de Moraes
Fotografia: Rarindra Prakarsa
É na câmara escura dos teus olhos
que se revela a água
água imagem
água nítida e fixa
água paisagem
boca nariz cabelos e cintura
terra sem nome
rosto sem figura
água móvel nos rios
parada nos retratos
água escorrida e pura
água viagem trânsito hiato.
Chego de longe. Venho em férias. Estou cansado.
Já suei o suor de oito séculos de mar
o tempo de onze meses de ordenado;
por isso, meu amor, viajo a nado
não por ser português mal empregado
mas por sofrer dos pés
e estar desidratado.
Chego. Mudo de fato. Calço a idade
que melhor quadra à minha solidão
e saio a procurar-te na cidade
contrastada violenta negativa
tu única sombra murmurada
única rua mal iluminada
única imagem desfocada e viva.
Moras aonde eu sei.
É na distância
onde chego de táxi.
Sou turista
com trinta e seis hipóteses no rolo;
venho ao teu miradoiro ver a vista
trago a minha tristeza a tiracolo.
Enquadro-te regulo-te disparo-te
revelo-te retoco-te repito-te
compro um frasco de tédio e um aparo
nas tuas costas ponho uma estampilha
e escrevo aos meus amigos que estão longe
charmant pays
the sun is shining
love.
Emendo-te rasuro-te preencho-te
assino-te destino-te comando-te
és o lugar concreto onde procuro
a noite de passagem o abrigo seguro
a hora de acordar que se diz ao porteiro
o tempo que não segue o tempo em que não duro
senão um dia inteiro.
Invento-te desbravo-te desvendo-te
surges letra por letra, película sonora,
do sendo à vogal do tema à consoante
sem presença no espaço sem diferença na hora.
És a rota da Índia o sarcasmo do vento
a cãibra do gajeiro o erro do sextante
o acaso a maré o mapa a descoberta
dum novo continente itinerante.
José Carlos Ary dos Santos
Obra Poética
Cidade branca
semeada
de pedras
Cidade azul
semeada
de céu
Cidade negra
como um beco
Cidade desabitada
como um armazém
Cidade lilás
semeada
de jacarandás
Cidade dourada
semeada
de igrejas
Cidade prateada
semeada
de Tejo
Cidade que se degrada
cidade que acaba
Adília Lopes, POEMAS NOVOS, Edições & etc,
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada.
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por Dom Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca....
Fernando Pessoa, Obra Poética
Fotografia: Jacqueline Roberts
O grande poeta Bocage mais actual que nunca!
Baixa, de olhos ruins, amarelenta,
Usando só de raiva e de impostura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Um mar de fel, malvada e quezilenta;
Arzinho confrangido que atormenta,
Sempre infeliz e de má catadura,
Mui perto de perder a compostura,
É cruel, mentirosa e rabugenta.
Rosto fechado, o gesto de fuinha,
Voz de lamento e ar de coitadinha,
Com pinta de raposa assustadinha,
É só veneno, a ditadorazinha.
Se não sabes quem é, dou-te uma pista:
Prepotente, mui gélida e sinistra,
Amarga, matreira e intriguista,
Abusa do poder... e é MINISTRA.
QUEM É?
Bocage
Não há, não,
duas folhas iguais em toda a criação.
Ou nervura a menos, ou célula a mais,
não há de certeza, duas folhas iguais.
Limbo todas têm,
que é próprio das folhas;
pecíolo algumas;
bainha nem todas.
Umas são fendidas,
crenadas, lobadas,
inteiras, partidas,
singelas, dobradas,
Outras acerosas,
redondas, agudas,
macias, viscosas,
fibrosas, carnudas.
Nas formas presentes,
nos actos distantes,
mesmo semelhantes
são sempre diferentes.
Umas vão e caem no charco cinzento,
e lançam apelos nas ondas que fazem;
outras vão e jazem
sem mais movimento.
Mas outras não jazem,
nem caem, nem gritam,
apenas volitam
nas dobras do vento.
MIGUEL TORGA
Fotografia: Gianluca Moret
Meu amor que eu não sei. Amor que eu canto. Amor que eu digo.
Teus braços são a flor do aloendro.
Meu amor por quem parto. Por quem fico. Por quem vivo.
Teus olhos são da cor do sofrimento.
Amor-país.
Quero cantar-te. Como quem diz:
O nosso amor é sangue. É seiva. E sol. E primavera.
Amor intenso. Amor imenso. Amor instante.
O nosso amor é uma arma. E uma espera.
O nosso amor é um cavalo alucinante.
O nosso amor é um pássaro voando. Mas à toa.
Rasgando o céu azul-coragem de Lisboa,
Amor partindo. Amor sorrindo. Amor doendo.
O nosso amor é como a flor do aloendro.
Deixa-me soltar estas palavras amarradas
Para escrever com sangue o nome que inventei.
Romper. Ganhar a voz duma assentada.
Dizer de ti as coisas que eu não sei.
Amor. Amor. Amor. Amor de tudo ou nada.
Amor-verdade. Amor-cidade.
Amor-combate. Amor-abril.
Este amor de liberdade.
Joaquim Pessoa
Fotografia: Mujahid Awais
Lusa
Publicação: 08-03-2008 14:54
Elas sorriem quando querem gritar.
Elas cantam quando querem chorar.
Elas choram quando estão felizes.
E riem quando estão nervosas.
Elas brigam por aquilo em que acreditam.
Elas levantam-se contra a injustiça.
Elas não aceitam um "não" como resposta
quando acreditam que existe melhor solução.
Elas andam sem sapatos para
que as suas crianças possam tê-los.
Elas vão ao medico com uma amiga assustada.
Elas amam incondicionalmente.
Elas choram quando as suas crianças adoecem
e alegram-se quando elas ganham prêmios.
Elas ficam contentes quando ouvem sobre
um aniversário ou um novo casamento.
Pablo Neruda
Pintura: C. Moura
não me perguntem coisas daquelas que eu não creia
não me perguntem coisas daquelas que não sei
remeto para os senhores as decisões do mundo
tais como governar, fazer decretos lei
no meio da tempestade no meio das sapiências
se poeta nasci, poeta morrerei
nem homem de gravata nem homem de ciências
apenas de mim próprio, e pouco, serei rei
das decisões do mundo lerei o que entender
que dentro de mim mesmo às vezes nasce um rio
e é esse desafio que nunca hei-de esquecer
e é essa a diferença que faz o meu feitio
mas digam por favor de onde nasce o sol
que eu basta-me o calor - para lá me voltarei
e saibam já agora que se eu lavrar a terra
me bastará que chova que o resto eu o farei
e digam por favor se o céu inda nos cobre
e bastará o azul
que em ave me tornei
mantenham com cuidado as árvores e estradas
pr'a gente poder ver, p'ra gente circular
que eu basta-me saúde e o sonho tão distante
e a boca perturbante que tu me sabes dar
e a festa de viver e o gozo e a paisagem
desta curva do Tejo, soprando a brisa leve
e na tranquilidade assim desta viagem
parar-se o tempo aqui, eterno, fresco e breve
que eu voo por toda a parte mas noutro horizonte
e vivo as coisas simples e rio-me da ambição
e ao fim de tanto ver, escolherei um monte
de onde assistirei, sorrindo, ao vosso enfarte
da ânsia de possuir, da ânsia de mostrar,
da ânsia da importância, da ânsia de mandar
e digam por favor de onde nasce o sol
que eu basta-me o calor - para lá me voltarei
e saibam já agora que se eu lavrar a terra
me bastará que chova que o resto eu o farei
e digam por favor se o céu inda nos cobre
e bastará o azul
que em ave me tornei
(letra e música de Pedro Barroso in CD "Critica-mente", 1999)
Fotografia: Mikel Arrizabalaga
Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar.
Levaram-te a meio da noite
A treva tudo cobria
Foi de noite, numa noite
De todas a mais sombria
Foi de noite, foi de noite
E nunca mais se fez dia.
Ai dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar
Oiço apenas o silêncio
Que ficou no teu lugar
Ao menos ouves o vento!
Ao menos ouves o mar!
Peço, que V. Exas. sejam breves nas represálias que pretenderem exercer sobre mim.
É que vou a caminho dos 74 anos; já fui operado 17 vezes; já nada cá ando a fazer; já não tenho quem dependa de mim; já nada me importa em termos de futuro e, se demorarem muito tempo, já não lhes darei o prazer de me verem espernear de raiva, de dor, de sofrimento e de arrependimento por ter ajudado à possibilidade de V. Exas. me enxovalharem como têm feito.
Imagem original do We Have Kaos in the Garden
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
Ódio, solidão e crueldade,
Alguns lamentos,
Muitas espadas.
É urgente inventar a alegria,
Multiplicar as searas,
É urgente descobrir rosas e rios
E manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
Impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
Permanecer.
Eugénio de Andrade, Antologia Breve
Fotografia: Carol Commins
É possível falar sem um nó na garganta.
É possível amar sem que venham proibir.
É possível correr sem que seja a fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.
É possível andar sem olhar para o chão.
É possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros.
Se te apetece dizer não, grita comigo: não!
É possível viver de outro modo.
É possível transformar em arma a tua mão.
É possível viver o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.
Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre, livre, livre.
Não tenhas medo, ouve:
É um poema
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza.
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz...
Miguel Torga, Diário XIII
Fotografia: vanessa81372